"Falareis de nós como de um sonho."
Jorge de Sena
Eu gosto das aldeias socegadas,
Com seu aspecto calmo e pastoril,
Erguidas nas collinas azuladas -
Mais frescas que as manhãs finas d'Abril.
António Gomes Leal
(o Avô Zé Roque, o Tio Manuel da Moca e o Tio Daniel)
Para mim "Ir à Terra" era sinónimo de aventura, avançar pelo desconhecido, fazer-me forte quando o medo vinha, chorar à noite e fechar os olhos receosos dos monstros que se escondiam por detrás de cada sombra da janela.
Eu e a Mãe somos alfacinhas, mas o pai, albicastrense de gema, primogénito de uma família numerosa de Gaviãozinho, Santo André das Tojeiras , desenvolveu as costelas de Alis Ubbo quando, com apenas um ano de idade, veio viver com os padrinhos para a capital.
Os avós continuaram no seu pacato vilarejo à beira da Ribeira do Ocreza, na sua pequena casa térrea com um sótão escuro, lareiras em cada quarto, um jardinzinho murado e um anexo com um forno de cúpula alva e redonda, onde se cozia o pão e se preparavam todos os doces e cozinhados importantes das festas.
Os bolos da Avó Hortense, com erva doce, azeite puro e mel, eram famosos nas redondezas.
Não havia estrada para lá chegar, só um caminho com frequentes lombas de grandes pedregulhos negros, barreiras naturais difíceis de ultrapassar pelos automóveis de então.
O percurso fazia-se de comboio até Castelo Branco, onde o Avô Zé Roque e o tio Manuel da Moca e mais dois ou três compadres, nos esperavam com uma récua bem selada que fazia o transporte até ao Gaviãozinho.
O perfume das estevas em flor na beleza agreste da paisagem, foi marcado a ferro e fogo na minha memória de criança. Passe o tempo que passar, uma fragãncia leve, vindo sabe-se lá de onde, acorda a recordação e tenho outra vez 4 anos e grito do colo da Mãe "Arre macho!" e ela ri, com aquele sorriso tão lindo e tão jovem, o mesmo que ainda hoje conserva nos lábios enrugados.
O Avô saia cedo, tratar dos animais, regar os campos, colher diospiros que me dava às colheradas e que ainda hoje adoro comer... A Avó preparava o mata-bicho e seguia com a merenda que aprontara a juntar-se a ele. A mãe cozinhava o almoço para os de fora e só os voltávamos a ver à tardinha, quando regressavam do campo , sempre com um afago e uma flor para a menina. Conversávamos e riamos à mesa do jantar, à luz de candeeiros a petróleo com os vidros desenfarruscados que brilhavam uma luz quente e difusa. Juntavam-se tios e primos, uns que conhecia , muitos que nunca vira na vida. Conversavam e cantavam, com o avô a dedilhar a guitarra. No fim, as mulheres como era costume, arrumavam as loiças que iam lavar em grandes alguidares de barro, os homens iam fumar e conversar para o jardim, e o Avô Zé pegava-me ao colo e levava-me a ver as figuras no céu, que era branco de luzes numa noite de breu.
( A pequena D, adorava os banhos de rio, ao colo da Mãe)
Tomar banho no rio era uma festa; "as de Lisboa", de fato de banho e touca, eram uma visão do paraíso para os moçoilos habituados a saias compridas e colarinhos apertados. A Tia Adelaide, que acompanhava sempre estas expedições e não vestia fato de banho, ria a bandeiras despregadas e tão intensamente, que se chegava a pensar que a sua saia molhada, não o fora pelas águas do Ocreza.
O rio era frio , mas tão transparente que se viam os peixinhos curiosos debicar junto aos nossos pés. Lembro-me de ter uma cuequinha de banho vermelha com bolinhas brancas e muitos folhos, que me almofadavam o assento e eu chapinhava feliz.
Devia andar pelos meus oito anos, quando a Avó Hortense desenvolveu um problema grave e incurável de bronquite asmática, que juntamente a uma condição cardíaca pré-existente não lhe permitiria viver muito tempo se continuasse no Gaviãozinho.
Venderam-se terras na "terra" e comprou-se uma quinta com casa e estábulo na Barra Cheia , perto da Moita, para os avós se poderem mudar e terem alguma qualidade de vida.
Foi como trazer uma bela planta silvestre e transplantá-la para um vaso, numa terra distante. Pegou, floriu, mas perdeu o viço, a cor e o cheiro, e os Avós nunca mais foram os mesmos. Estavam por cá, mais saudáveis, mais cuidados, perto dos filhos e dos netos , mas a alegria da sua alma, essa ficara naquele vilarejo da Beira Baixa, enterrada numa sepultura triste e sem nome, onde nunca mais ninguém lhe descobriu o rasto.
(Precious Memories, by Bob Dylan & Willie Nelson)